21.3.10

Quando Lobo Antunes escreveu a Céline por Isabel Coutinho

Quando Lobo Antunes escreveu a Céline…

Isto começou assim: António Lobo Antunes tinha 14 ou 15 anos quando o pai lhe deu para ler, na versão original, “Morte a Crédito”, de Louis-Ferdinand Céline. Era um médico a dar um livro escrito por um médico a um filho que viria a ser médico. António leu-o e teve um dos seus “primeiros deslumbramentos”. Mais tarde leu “Viagem ao Fim da Noite” e Céline foi vital. “É um dos grandes escritores do século XX e, em Portugal, é muito mal conhecido ou então não é compreendido”, diz ao Ípsilon o autor de “Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?”.
Depois, o adolescente de calções escreveu uma carta Céline. Enviou-a para a morada da editora em França e pedia-lhe uma fotografia. “Está a ver a ingenuidade? Como se ele fosse um actor de cinema”, conta.
Louis-Ferdinand “perdeu tempo com o miúdo” e respondeu-lhe. Era uma carta escrita à mão, num papel A4 amarelo, com uma letra torcida mas fácil de ler.
“Eu dizia-lhe que queria ser escritor, que tinha 15 anos e ele respondeu-me com uma carta de uma imensa ternura: ‘Não tenho fotografia porque não sou actor de cinema. Mas se queres ser escritor vê lá porque depois não podes ir ao cinema, não podes ter namoradas, não podes não sei lá o quê… Porque escrever é uma coisa muito difícil e exige muito tempo, tens que passar a vida agarrado ao livro…’ Tinha toda a razão no que estava a dizer. Eu aos quinze anos sabia lá o que era escrever! Escrevia porcarias como qualquer miúdo, tinha dentro de mim a certeza de que ninguém ia escrever coisas como as que eu havia de escrever e só escrevia merda. E fiquei maravilhado. Lembro-me de ter andado todo o tempo que pude com o envelope daquela carta porque tinha o meu nome escrito pela mão dele. Nunca tinha tido contacto com nenhum escritor e até à saída da ‘Memória de Elefante’ também não conhecia ninguém.”
Ainda tem essa carta? “Tenho mas não mostro. O envelope desapareceu-me. Perdi-o, também já estava tão gasto, todo dobradinho. Também não mostrava a ninguém porque os meus colegas de liceu sabiam lá quem era o Céline!”
Um desses colegas de liceu era Eduardo Prado Coelho, que mais tarde escreveu no seu diário: “Em Céline, o segredo íntimo de cada ser está nessa humidade viscosa e agoniada, nessa baba intestina, nessa espuma aviltante das tripas e mucosas - o nuclear é o excremencial (…) O universo de Céline é um inferno visceral. - É aqui que eu entendo melhor a repugnância liminar que me suscita uma escrita que é feita de roncos, perdigotos e metáforas viscosas.” Com Céline não há meio-termo: ou há paixão ou repúdio.

Maldito até para a PIDE

Aníbal Fernandes estava em Luanda nos anos 60 quando foi contactado por Vítor Silva Tavares para traduzir “Viagem ao fim da noite” para a Ulisseia. Havia já uma tradução em Portugal, feita por Campos Lima para a Século, em 1944, mas não era a versão integral e estava “muito cortada e suavizada”.
Não foi fácil. A obra tem “um calão muito especial” e na altura não existiam os dicionários de “argot” que existem hoje, explica Aníbal Fernandes. Além de ser uma obra difícil de traduzir, algumas passagens não podiam ter a força que tinham no original porque a censura não deixava passar e mesmo assim o livro foi retirado.
Mais tarde, em 1997, quando Aníbal Fernandes reviu a tradução para a editora de Paulo da Costa Domingos, a Frenesi, modificou não só o estilo da sua primeira tradução como verificou que algumas coisas não queriam dizer bem o que ele tinha pensado. “Nessa altura fiz a nova tradução já em condições especiais porque tinha os elementos todos, tinha mais anos de leitura daquilo, conhecia bem o Céline e foi no início da minha reforma, tinha o tempo todo livre.” Esta tradução é a versão reeditada agora pela Ulisseia e o tradutor não lhe voltou a mexer desde aí.
O primeiro editor da versão integral foi Vítor Silva Tavares, da “& etc”, que em 1966 estava na Ulisseia. O editor não só teve dificuldades em conseguir os direitos na Gallimard (estavam congelados pelos brasileiros) como era “politicamente incorrecto” publicar um autor conotado com o anti-semitismo e se dizia que tinha ligações nazis. “Eu sabia isso tudo mas também sabia que se tratava de um gigante da língua francesa”, explica Silva Tavares. E avançou. Mas nada decorreu em águas mansas. Não só o tradutor e editor tiveram atritos e divergências por causa da tradução, como depois de o livro estar publicado foi retirado do mercado pela PIDE.
Como era um autor bem visto pela direita, para Vítor Silva Tavares foi “uma grande surpresa” quando a PIDE “assaltou” a sua editora para confiscar o romance. Só poderia haver uma razão: “‘Viagem ao Fim da Noite’ é um libelo contra a guerra, ao fim e ao cabo é um livro anti-bélico”, diz o editor lembrando que naquela época, 1966, se estava no auge da Guerra Colonial e do ponto de vista político não interessava ao governo de então que as pessoas lessem um livro com esse ponto de vista.
“Quando ‘Viagem ao Fim da Noite’ apareceu foi uma novidade total. Nunca ninguém tinha escrito assim, nunca ninguém tinha violado as regras do francês daquela maneira para fazer a música, ‘la petite musique’, que ele queria. Além de um grande talento que, na minha opinião, nunca mais mostrou a um nível tão alto como nesse livro”, afirma o tradutor Aníbal Fernandes, para quem “Viagem…” tem uma estrutura de romance perfeita.
A mesma opinião tem António Lobo Antunes: o romance é de “uma inovação espantosa” até mesmo ao nível da estrutura. “Parece uma estrutura descuidada e não é.” Considera-a uma obra-prima. “O francês dele é inteiramente novo. Mais tarde Céline disse que a única coisa que tinha descoberto era uma teoria de corantes, que se limitava a colorir as coisas de maneira diferente. O que acho curioso é que ele não tem seguidores.”
Para Lobo Antunes o francês de Céline é de tal maneira pessoal que é impossível de traduzir. “Qualquer tradução de um grande livro é uma fotografia a preto e branco de um quadro. O trabalho do Aníbal Fernandes é sério e é honesto. Simplesmente é impossível traduzir aquilo, uma pessoa fica com uma vaga ideia. A própria novidade radical da linguagem no ano em que aparece, 1932, ainda se mantém hoje novidade radical. Ele reinventa um francês. É impossível dar a extraordinária novidade daquela prosa”, acrescenta.
“Aquilo é tudo uma novidade visceral. Mas depois o que é que o Eduardo [Prado Coelho] dizia? Que a prosa era viscosa, que aquilo era uma coisa horrorosa, nojenta quase comparada a fezes ou a tripas. Não é nada disso. Aqueles livros, toda a obra dele, mesmo os grandes delírios finais, em que ele já estava diminuído, são epopeias líricas.”
“É evidente que Céline teve um comportamento nojento mas aqueles livros, até certo ponto, são quase ficções porque é de tal maneira delirante. A prosa dele - é muito curioso - é um delírio estruturado. Acho que o que ele queria era fazer arte. Depois, claro que teve compromissos de vária ordem. Porque como homem tinha um carácter muito discutível. Mas realmente tem uma obra que não só é única, como é inclassificável. Rompe com todos os padrões até então. Sem dúvida alguma penso que nos franceses, os grandes inovadores do século XX são: Proust, Céline e mais tarde, o Samuel Beckett, do ‘Molloy’”, conclui Lobo Antunes.
Edição de 2010.
N. de páginas: 464. PVP - 22€

Edição de 1983.
N. de páginas: 474.

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