5.9.07

Pensamento de Lima de Freitas

«Nunca foi tão sinistra a idiotização das gentes! Vivo numa prisão de malfeitores, num asilo de imbecis, numa cloaca moral, num país esvaziado de substância ética ao qual foram extraídos os nervos da civilização (no sentido que Almada dava à palavra), da religião e da tradição (na face luminosa do termo) – ou se nem todos foram extraídos ainda, é possível que o sejam num futuro curo. A imprensa, a rádio, a televisão, os discursos políticos, a literatura que se publica, a arte que se faz, as aspirações que se proclamam, as “verdades” que se declaram fazem estremecer: e não só o gás letal da branda ou desesperada idiotia se espalha sobre Portugal como é visível haver outras toalhas, não menos tóxicas, cobrindo áreas cada vez maiores do mundo. Creio que “os tempos estão próximos” – e “ei-los já!” Mas ao invés da catástrofe colossal, do cometa de fogo, do incêndio radioactivo que se teme, é provável que o fim seja brando, estúpido, baço, como um doente que se esvai e desmaia e se afunda na cegueira, na incompreensão, na inconsciência. Em todo o caso, esta “civilização” não pode acabar de modo grande! A sua morte terá de se parecer com a sua face – terá de ser mesquinha, medíocre, opaca.
Poderá Portugal sobreviver, como os pacientes da lobotomia, sem cérebro? Mais valerá morrer. Esta vida vegetativa – só pança, só dinheiro, só grossas materialidades, bruta e sem nexo, provoca a náusea. Como os homens são feios!
Penso que D. Sebastião escolheu desaparecer, porque algum profeta lhe anunciou o que seria o Portugal do século XX.
Mas não será essa a lição dos tempos: precisamente que nada há a esperar do que é estritamente, baixamente humano? E então Portugal é o lugar privilegiado: a cloaca, o ânus do Ocidente, morte afinal muito próxima do lugar da ressurreição. Ser português é estar exilado no próprio país, é pois conhecer o estranhamento de tudo, o alheamento último de todos os sonâmbulos que me rodeiam e saber que na extremidade da degradação, de degrau, poderá estar a primeira vértebra da subida.»

11 de Janeiro de 1985, Diário 19, pp. 163-164.

Post-Scriptum: Trecho do Diário de Lima de Freitas que a Ésquilo projecta publicar no âmbito da edição completa das obras de Lima de Freitas. Esperamos e desejamos que essa vontade editorial se cumpra em prol da Cultura portuguesa.
A imagem superior intitulada Estudo para D. Sebastião é um acrílico sobre madeira, realizado em 1987 e pertença do Museu Grão Vasco, Viseu.
A imagem inferior representa D. Sebastão: o Encoberto é um azulejo da Estação dos Caminhos de Ferro do Rossio, Lisboa, 1996.

2 comentários:

Nuno Adão disse...

Excelente texto, amigo Nonas.

Cumprimentos

António Lugano disse...

Pertinente... Pertinente...
Merece reflexão !
A. Lugano